São Paulo tomada … pelo Carnaval


Depois de uma ficar uma hora com a boca aberta, para meu dentista poder reverter “o que a vida urbana e a ansiedade faz” (bruxismo), ele diz para mim que, nestes dias, o Carnaval de rua em São Paulo tem quebrado o recorde de participantes no Brasil. Maior do que em Salvador, maior do que em Ouro Preto, maior do que no Rio de Janeiro. Minha boca ficou aberta de novo. São Paulo virou uma festa de rua! 

Uma semana antes, a gente havia conversado a respeito do fenômeno do Carnaval, que tinha começado: a tradição, as músicas, os jovens na rua. Além disso, ele também falou sobre o tráfego nas poucas ruas da cidade que ficam abertas para o trânsito veicular, a respeito dos excessos do consumo de álcool e em relação aos pais que não protegem a juventude. Até mencionou os programas de educação quanto ao assédio das mulheres (nem só no Carnaval). No Uber, os condutores não deixaram de mencionar o tema do momento: “chegou o carnaval … é uma loucura”. Nessas conversas, dê-me conta de que o evento carnavalesco com tantas pessoas não era tão normal para a maioria dos paulistanos.  

O Carnaval, festa que parece ter origem no século XVII, durando três dias e antecedendo a Quaresma[1], era apenas, para alguns paulistanos, um evento para ficar na cidade e curtir as músicas ou assistir os desfiles no Sambódromo. Os demais, acostumavam aproveitar os dias de feriado para ir ao cinema ou sair para a praia, especialmente os da classe média. Inclusive, havia alguns que até iam para o Rio para participar do Carnaval de rua!

Eu, que apenas tenho um ano morando neste país e uns quatro visitando-o (o = ele = Brasil e meu namorado), pensava que o Carnaval de rua já era parte da vida cultural e da vida da cidade. Mas não. Os blocos começaram a ser eventos em toda a cidade há poucos anos. Existiam, sim. Sem embargo, eles eram pequenas festas locais que ocorriam em bairros pontuais de população negra.[2]

São Paulo, sempre diferenciada da capital carioca[3] ou da capital baiana ou da capital pernambucana, ficava “tranquila”, massageando a ideia de manter a cara séria do pais: a cidade dos empresários, a cidade que trabalha, a cidade dos prédios sem pessoas, a cidade dos bairros afastados, a cidade que pouco mostra a cara negra, a cara divertida, a cara urbana, a cara pública da cidade.  Até que a sua negritude, a sua urbanidade, a sua diversidade saiu do closet.

Em 2013, eram 60 os blocos oficias; no ano seguinte, 200; no ano passado, já eram 495; e, este ano, 570. Agora, para esse numero crescer, teve que ter interesse de grupos de jovens, hipsters na maioria, que estavam querendo viver uma cidade mais aberta. Não obstante, muitas das representações dos bairros negros continuam.

E possível dizer que cada bloco representa uma visão da cidade. O bloco afro, o bloco caricato, o bloco dos punks, o bloco dos anarquistas, o bloco dos conservadores, o bloco das mulheres, o bloco dos latinos, o bloco da Vila Madalena, o bloco de Barra Funda, o bloco do forró, o bloco do jongo[4]. Alguns, mais lindos e legítimos que outros. Ao final, todos presentes no espaço público da cidade.

O Carnaval de rua é tão importante para a cidade, quanto as mudanças urbanas dela. Segundo meu dentista, hoje minha Wikipédia humana, o turismo nestes dias aumentou muito e os hotéis estavam com um índice de ocupação de 80%. Muitas pessoas do interior e até estrangeiros vigaram especialmente para São Paulo para fazer parte do Carnaval. A garotada, que normalmente fica numa bolha da cidade, movimenta-se e vai para outros lares da cidade.

Os blocos levam as pessoas para rua. Lindo, hein? Os pedestres caminhando, dançando, rindo, comendo, bebendo, cantando, são as rainhas e os reis do espaço. Literal. O exercício de sair para o coletivo, em massa, e ter a liberdade de gritar, de falar, abre um espaço lúdico de ativismo. Faz evidente a ideia de que a cidadania, especialmente se ela estar organizada, é um ato político e que o espaço urbano, na sua qualidade de público, é sempre político.

Como já dito, o Carnaval é, também, uma mostra de representatividade das raças, das idades, dos sabores. Inclusive, o Carnaval é uma representatividade dos desejos, muitas vezes oprimidos pela cotidianidade reacionária. Além do romântico, óbvio que nos blocos ainda têm muitos espaços e grupos sociais que não aparecem. Os blocos concentram-se, na sua maioria, no centro, e são bem poucos os que existem e são famosos nas periferias. São poucos os blocos que nos bairros chicks da cidade têm maioria preta ou negra.

Temos que aplaudir, enquanto ficamos atentos. Porque é importante continuar refletindo sobre o desenvolvimento desta festa. Com o sucesso do evento, há uma crescente mercantilização também (a Skol em cada esquina?). Os blocos perderam certa espontaneidade e são organizados de acordo com os lineamentos da prefeitura. Temos uma falta de consciência no que diz respeito ao cuidado do outro, o respeito do outro que leva a ter incidentes de violência. Confronto e descontrole fazem parte do Carnaval também.

A pesar disso, a sensação final são as cores sobre as peles das pessoas, os sons das músicas, a imagem das ruas tomadas pela diversão, o metrô lotado de unicórnios, deferidas, de robôs, de protestos políticas, de sensualidade, é excitante. Ao menos, suaviza a grandiosidade de nossa São Paulo.

A tomada da cidade pelos jovens, pelos velhos, pelas mulheres, pelos negros, pelas negras, pelos bairros, pela musica é um momento de incomodidade para uns e de certa esperança para outros, tempos de abertura, de ar fresco.

Compartilho o orgulho do meu dentista pela cidade: São Paulo virou uma festa de rua!


[1] https://ligasp.com.br/carnaval-sp

[2] https://raquelrolnik.wordpress.com/2014/02/10/abram-alas-para-o-carnaval-de-sao-paulo/

[3] O carnaval no Rio de Janeiro começou a ter blocos de rua desde o século XIX e foi nos anos 20 do século passado que o carnaval, junto com as musicas desenvolvidas nessa cidade, tornaram-se bandeira da identidade multicultural da cidade, é inclusive do pais. O carnaval do ano passado teve tanta gente que foi até senário de muitos acontecimentos violentos também.

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Bloco_carnavalesco